Antes de qualquer coisa, vamos problematizar um pouco! É claro que propor uma reflexão relacionando as mulheres ao empreendedorismo nessa data, traz primeiramente a importância de mostrarmos a abrangência desse ser mulher. Falar de questões de gênero é algo que abraça diversos perfis e recortes como raça, classe, idade, orientação sexual, deficiência e outros fatores que vão interferir nos desafios e soluções desse universo tão rico e plural.  O ser mulher passa por cada mulher negra, branca, periférica ou não, mãe, PCD, homossexual, transgênero e outras tantas com perfis específicos que abrem caminhos para grandes debates. 

Todos esses recortes e suas condições podem e devem ser tratados com a devida atenção dentro do mercado de trabalho e do empreendedorismo. No entanto, aqui, nesse espaço, vamos levantar questões mais gerais sobre empreendedorismo como ponto de partida. Ficamos com o dever de casa de aprofundar cada intersecção com a devida atenção em próximos artigos. 

Última coisa, depois a gente vai para o assunto: as pesquisas e dados trazidos e analisados aqui são de organizações diferentes como SEBRAE, GEM, Think Olga, Rede Mulheres Empreendedoras, Oxfam e outros. Nem sempre as fontes são equânimes ou partindo de uma perspectiva feminina ou feminista. Contamos com vocês para trazer outros pontos de vistas e opiniões. 

 

Dia 19 de novembro é o dia mundial do empreendedorismo feminino, data comemorativa que tem o intuito de promover a liderança feminina e a visibilidade das mulheres que gerenciam um negócio, quebrando as barreiras sociais e preconceitos do setor! O Brasil se destaca no mundo por ter uma presença feminina no tecido empreendedor muito grande, e apresenta números próximos entre homens e mulheres que empreendem. Contudo, atrás dos dadosessas mulheres ainda enfrentam um ambiente social e empresarial menos acolhedor e menos favorável. Por isso, um dia especial reservado para tratar esse tema ainda é algo pertinente aqui e no resto do mundo. 

Empreendedorismo tem gênero?

 Em 2019, 39% da população adulta brasileira estava envolvida na gestão de um empreendimento, levando o país a um total de mais de 53,4 milhões empreendedores. Desses, 47% eram mulheres, taxa inferior à taxa da população brasileira (52%), mas próxima o suficiente para colocar o Brasil dentro dos países com maior equilíbrio de gênero em termos de participação no ecossistema. 

Contudo, enquanto o número de empreendedores homens e mulheres se igualam na fase inicial (primeiros anos do empreendimento), o país sofre de uma queda na presença feminina na fase mais consolidada do negócioEssa não é a única diferença medida entre negócios gerados por homens ou por mulheresO SEBRAE e o GEM nos trazem uma realidade pouco favorável para as empreendedoras: 

  • A taxa de mulheres que começam a empreender por necessidade (44%) é maior que a dos homens (32%); 
  • Mulheres donas de negócio ganham 22% a menos que os homens donos de negócio; 
  • Uma parcela expressiva de empreendedoras trabalha no domicílio (diferente dos homens empreendedores); 
  • Seus negócios empregam menos em média; 
  • Mulheres empreendedoras tomam/têm acesso a menos empréstimos nos bancos; 

Colocando a lupa sobre uma das intersecções ditas no início, quando tratamos desse mesmo cenário com um recorte de raça, por exemplo, os números mostram maiores falhas e abismos sobre o tema gênero, mercado de trabalho e empreendedorismo: homens brancos ganham 159% a mais que mulheres negras nas mesmas ocupações e apenas 10,4% das mulheres negras concluem o ensino superior, enquanto 23,5% das mulheres brancas concluem. 

O gênero por si só  como todas as intersecções e construções sociais  não explica essa fotografia desigual. Em outros termos, existe(m) algum(ns) fator(es) que joga(m) contra o desenvolvimento e a sobrevivência de negócios geridos por mulheres no Brasil.  

Aqui vale um adendofaturamento, geração de empregos, acesso a crédito, e porte podem ser considerados indicadores de sucesso definidos de um certo tipo de perspectiva, não necessariamente tão diversa e plural. Portanto, podem não representar a definição de sucesso para cada camada de mulher. Por exemplo, uma mãe, chefe de família, empreendendo no seu domicílio para poder estar próxima dos seus filhos, pode definir como sucesso a sua capacidade de sustentar a família, como o vimos na nossa pesquisa “Jornada do microempreendedor da comunidade”. 

Empreendedora: o problema não é você! 

Muitos são os motivos que explicam esse cenário com números ainda desiguais. A maioria deles é fruto de uma história antiga marcada pelo patriarcado e exclusão das mulheres de ambientes de decisão econômica e política. Mesmo atualmente com mulheres empreendedoras do passado sendo reveladas e reconhecidas pelos seus ganhos, e todo espaço que as vozes atuais trazem, os desafios enfrentados ainda são parecidos com os de décadas atrás. 

Mulheres ainda escutam frases como “mas eu quero falar com o dono, não com você” e ainda são questionadas sobre sua capacidade de conseguir e quitar um crédito baseado em sua vida conjugal ou maternidade. Mesmo com os dados mostrando que mulheres são mais adimplentes que homens, elas ainda pagam taxas de juros mais altas que eles. Preconceito, autoconfiança, dupla jornada, dificuldade de acesso ao crédito e maternidade são alguns dos fatores que permeiam o dia a dia das mulheres empreendedoras.  

A questão da dupla jornada ganhou ainda mais relevância com o momento de pandemia que estamos passando. Se antes as mulheres já eram responsáveis por mais tarefas domésticas que os homens, agora esses cuidados aumentaram. Uma pesquisa mostrou que em 2016, as mulheres dedicaram aos cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos aproximadamente 73% a mais de horas do que os homens (18,1 contra 10,5 horas semanais). Isso ajuda a entender porque muitas delas acabam empreendendo em tempo parcial para conseguir conciliar o negócio com os afazeres domésticos e cuidados de pessoasMenos tempo para o negócio resulta em menor faturamento e renda. 

E essa realidade só ganha contornos mais desafiadores se pensarmos que durante a pandemia, segundo o SEBRAE, os negócios liderados por mulheres foram os mais afetados pela crise econômica (52% contra 47% dos homens) e foram também amulheres as que mais perderam ou abandonaram o emprego (25% a mais que os homens)Seguindo essa lógica equivocada de que mulheres cuidam do lar, talvez por conta de seus salários muitas vezes mais baixo, as famílias optam por manter o emprego do homem para que as mulheres possam cuidar da casa e das consequências que o novo cenário do Covid 19 vem trazendo.  

Esse mesmo cenário pode estar ajudando na proporção de negócios iniciados por necessidade onde mulheres são maioria44% contra 32% homens. Se estão em casa e precisam completar renda sem deixar os afazeres do lar, qual a saída? Claro que as histórias sobre negócios que iniciam dessa forma, mas crescem e se tornam uma paixão também são muitas, mas vale o alerta e cuidado constante com os motivos que levam negócios de mulheres serem considerados mais frágeis ou perenes. Que outras cargas elas carregam que contribuem com esses dados? 

O preconceito e autoconfiança neste tópico andam de mãos dadas. Ter sua capacidade diminuída ou questionada por ser mulher (fruto do preconceito), pode dar espaço para uma tensão que ajuda a alimentar sentimento constante de não ser boa o suficiente ou o medo de falhar. A sensação é a de ter que se provar boa para o cargo que ocupa ou para o negócio que está começando o tempo inteiro. Homens são mais resistentes a esse sentimento que pode levar a autossabotagem. Uma pesquisa do GEM mostrou que cerca de 60% dos homens afirmam ter conhecimento, habilidade e experiência necessária para começar um negócio, contra 49% das mulheres. 

Novamente o olhar para outras intersecções que comentamos no início deve ser lembrado: cada desafio citado até agora pode ganhar outro peso se considerado questão racial, de classe, orientação sexual e outrosE pensando desse modo, a maternidade é um ponto para ser destacado aqui como um recorte relevante, pois 53% das empreendedoras brasileiras são mães. Comficam as responsabilidades a criação desses filhos na hora de liderar um negócio ou começar um novo cargo? Que condições os homens, o estado ou as empresas estão dando para que as crianças tenham educação e sejam cuidadas enquanto as mães empreendem? 

O interessante é que essa mesma maternidade é a que leva 7 a cada 10 mulheres buscaram o empreendedorismo.  Segundo um estudo da Rede Mulher Empreendedora, pequenos e grandes negócios surgem porque mulheres buscam atividades que podem exercer em casa ou de maneira mais flexível. isso não significa que elas trabalham pouco: 27% das empreendedoras entrevistadas trabalha de sete a oito horas por dia; 25% trabalha de quatro a seis horas por dia; e 23% trabalha de nove a dez horas por dia. 

Atores do ecossistema: as soluções estão nas suas mãos! 

Você provavelmente deve ter percebido que as barreiras enfrentadas por mulheres empreendedoras são estruturais e envolvem questões não necessariamente com falhas na administração dos seus negócios. Para que possamos melhorar os indicadores listados anteriormente, precisamos de serviços e políticas afirmativas, multidimensionais e envolvendo diferentes atores.  

Certas soluções podem inclusive ser distante do empreendedorismo e, mesmo assim, resultar em um impacto significativo. É o exemplo de projetos que visam reduzir o peso das tarefas domésticas das mulheres como o acesso a eletrodomésticos, a implementação de creches ou a sensibilização de homens sobre igualdade de gênero, divisão de tarefas e apoio ao desenvolvimento das mulheres empreendedoras que estão em suas vidas. Dito isso, listamos aqui algumas soluções já desenvolvidas por várias organizações e territórios que podem ser reproduzidas e ampliadas.  

Aumentar o ingresso de mulheres no empreendedorismo 

Políticas públicas de inclusão produtiva com recorte específico para mulheres permitem gerar oportunidades de trabalhocriação de novos negócios locais e possivelmente inovação e impacto dependendo da definição dos programas. Podemos aqui pensar em negócios inclusivos como o projeto Kiteiras da Danone em parceria com a Aliança Empreendedora, que desenvolveu um novo canal de vendas porta-a-porta em Salvador e São Paulo para distribuir seus produtos com microempreendedoras locais.  

Essas iniciativas são fortes também quando pensamos em apoiar grupos prioritários. Esse é o caso da Lei Ordinária nº 2.644, de 31 de julho de 2020 da Câmara de Manaus que prevê um programa de inclusão de mulheres vítimas de violência. 

Focar na autoestima e quebra dos preconceitos 

Vimos que mulheres em média (por intersecção, a questão varia), estudam mais do que homens. Por essa razão, organizações que trabalham com educação empreendedora, ao pensar soluções para mulheres, precisam considerar trabalhar a desconstrução de mitos sobre empreendedorismo e desenvolver a autoconfiança e o protagonismo das empreendedoras para além da gestão e da técnica. 

A mesma dica vale para serviços de assessoria, mentoria e consultoria. Para estes, ainda recomendamos garantir uma equipe profissional que seja representativa do públicoalvo. A conexão e a empatia entre empreendedora e especialista gerarão melhores resultados. O Instituto Rede Mulher Empreendedora é um ótimo exemplo, caso não conheçam ainda. 

Definir condições e premissas que sejam justas para a realidade das mulheres 

O microcrédito é muitas vezes negado para empreendedores de classe CDE, principalmente informais. Sabemos agora que mulheres acabam tendo menor acesso do que homens. Precisamos que as instituições financeiras adaptem e/ou especializem suas ofertascondições, juros e indicadores para que sejam realistas. Vários bancos  como o Banco da Mulher Paranaense – e programas – por exemplo CredCidadão no Pará  trabalham com essa linha de pensamento. Cabe à sociedade civil e o Poder Público fiscalizar e cobrar as entidades para que garantem os mesmos direitos e acessos entre homens e mulheres. 

Aliviar possíveis perdas de renda com auxílio financeiro para soluções que requerem um certo investimento em tempo das mulheres 

Participar de cursos, eventos, palestras, e pensar em inovação e estratégias para o negócio tira a empreendedora da produção e venda. Logo, soluções de inclusão empreendedora são percebidas como perda de dinheiro a curto prazo em um contexto que lucrar já é difícil. Por isso, é preciso pensar em bolsas integrais, ajuda de custo e auxílio financeiro que compensem essa perda e garantem que as empreendedoras não vão sair prejudicadas (a curto prazo). 

 

Claro, existem muitas outras soluções como a inclusão digital, fomento de redes de mulheres, educação financeira, sendo alguns exemplos. Citamos alguns atores do ecossistema sabemos que existem muitos outros que fazem um trabalho fantástico. Contamos com vocês para compartilhar com a gente iniciativas que inspiram vocês. 

No mais, desejamos a todas um ótimo Dia do Empreendedorismo Feminino! Juntes, vamos construir um ecossistema mais igualitário! 

Texto: Mariana Rodrigues – consultora de projetos na Aliança Empreendedora e Florian Paysan – Coordenador do Empreender 360